Grandes tragédias só são entendidas na sua real dimensão quando podemos ver os rostos de seus personagens e conhecer suas histórias. Do contrário, a tragédia é apenas uma estatística. E números, por mais grandiosos que sejam, não traduzem dores, tristezas e desumanidades.
É preciso contar histórias. E é uma história que eu vou contar pra vocês.
Na tarde quente do dia 5 de novembro de 2015, um monstro pareceu despertar das entranhas da terra, disposto a destruir tudo que encontrasse pela frente. Esse monstro estava adormecido havia sete anos na forma de um gigantesco reservatório de lama de rejeitos de minério de ferro. Essa lata de lixo de tamanho descomunal era resultado do processo de extração do minério e formava a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
O reservatório armazenava uma quantidade de rejeito que daria para encher 21 mil piscinas olímpicas. A barragem se rompeu e a lama se pôs em marcha com um estrondo de fim do mundo. Por onde a lama passou, pessoas foram arrastadas e engolidas, árvores foram arrancadas, casas sumiram como se fossem feitas de pó, córregos foram soterrados, rios se encheram de lama; animais gritavam em desespero sem nenhuma chance de se salvar. Peixes morreram asfixiados. Povoados desapareceram. O grande rio Doce, sagrado para os indígenas Krenak virou um caudaloso rio de ferrugem. A lama recolheu lágrimas pelo caminho e atingiu o oceano com as cores do desespero e da tragédia.
Eu já tinha visto muitos cenários de desastre na profissão de jornalista: tempestades, desabamentos, incêndios, terremotos, inundações, desmoronamentos … Mas o da barragem estava muito além da minha capacidade de imaginação. Quando vi aquele cenário de catástrofe, me dei conta que aquela história tinha que ser narrada de outra forma, diferente do relato jornalístico. Era uma história com muitas vozes. As vozes de Mariana. E elas não caberiam apenas em uma ou mesmo várias reportagens. Mariana e seus personagens pediam um testemunho perene, uma narrativa para a História. Em resumo: um livro.
Eu tinha uma vaga ideia do que fazer, por onde começar, mas não tinha um roteiro alinhavado. Foi no contato com as pessoas que sobreviveram à lama que a história definiu seus contornos. Era importante, claro, contar a história da barragem, dos erros e decisões de risco que levaram ao desastre. Mas o que me mostrou o caminho foi conversar, ouvir, escutar as pessoas que viveram tudo aquilo; entender como elas estavam sobrevivendo a todas as perdas e como estabeleceram redes de solidariedade e compartilhamento de experiências. Como se toca a vida pra frente diante de um súbito e avassalador vazio? Numa tragédia dessa magnitude vemos o pior e também o melhor do ser humano.
Começo com a história de Paula Alves, a grande heroína, anônima e popular dessa história. A moça que ao ver a lama se aproximando do povoado de Bento Rodrigues subiu na sua moto e saiu gritando, avisando a todos os moradores, vizinhos, parentes e amigos, que o apocalipse se aproximava. Paula só parou de rodar quando a gasolina da moto acabou. A Samarco não tinha sirene para avisar as pessoas do perigo. Paula foi a sirene humana que a mineradora não tinha.
Na hora que a lama chegou, a escola de Bento Rodrigues estava cheia com os alunos do turno da tarde. A diretora, Eliene, foi alertada do rompimento e correu para avisar todos os alunos. A maior preocupação era com Josimara, aluna de 15 anos e grávida de oito meses. Eliene foi a última a deixar a escola. Só saiu depois de ter certeza que todos os alunos tinham conseguido sair e correr para o alto da encosta.
A lama destruiu histórias de amor, como a de Lira e Marcos Aurélio. Ele morava em São Paulo e uma vez por mês ía até a barragem vender produtos químicos. A barragem caiu no dia que o Marcos Aurélio estava lá para testar os produtos. A história de amor de Aline e Samuel, que planejavam um segundo filho, também acabou nesse dia.
Escrevi o livro “Tragédia em Mariana” com a pretensão e a convicção de que ele seria um alerta para que uma tragédia como essa nunca mais voltasse a acontecer no Brasil: 19 vidas desperdiçadas, 19 famílias destroçadas e um ecossistema agredido com uma violência de guerra. Acredito que informação e conhecimento salvam vidas. Taí a pandemia para comprovar a minha crença. Quem se informa, se protege. Mas, no caso das barragens, foi uma crença ingênua.
Na tarde de 25 de janeiro de 2019, descobri o quanto estava enganada. Outra barragem se rompeu, desta vez em Brumadinho. O mesmo tipo de barragem de Mariana, também em consequência do mesmo tipo de operação negligente e de risco, que não se preocupa com a vida humana e muito menos com o meio ambiente. Em primeiro lugar, estão os lucros e dividendos para os acionistas. Em Brumadinho, foram 270 pessoas mortas. Algumas estão desaparecidas até hoje. Aconteceu tudo de novo: famílias destroçadas, casas soterradas e o rio Paraopeba asfixiado. Tudo sucumbe diante do desapreço à vida.
Pouco mais de um ano depois, a pandemia do coronavírus nos pegou despreparados para mais um ciclo de morte e destruição de sonhos, famílias, projetos. Chegamos a ter mais de mil pessoas mortas por dia. Um ciclo que ainda se desdobra.
E o que dói mais é ver que uma parte da sociedade se acostumou ou se acomodou às estatísticas e encara esse roteiro pavoroso como destino ou fatalidade. Sabemos que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Como poderiam ter sido evitadas as mortes de Mariana e Brumadinho.
Não podemos nos acostumar com os lucros em primeiro lugar, com os projetos político-partidários ou qualquer tipo de conveniência em primeiro lugar. Não podemos nos conformar com a estatística que nos esvazia de humanidade. 156 mil mortos pela pandemia no Brasil. Já me fiz várias vezes a mesma pergunta: quantas mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos tido a orientação correta desde o começo? Teremos essa resposta algum dia?
O coronavírus nos impôs um tempo de muitas reflexões. A natureza reagiu com a ausência dos humanos na rua, com menos queima de combustível, com menos poluição produzida por nós. Animais apareceram aonde não eram mais vistos, o céu ficou mais limpo na Índia e os picos do Himalaia puderam ser vistos novamente; o ar ficou mais puro nas megalópoles. O que estamos fazendo com a mãe Terra, o único lugar do universo onde podemos morar, nossa única casa comum ?
O fogo das queimadas no Brasil, assim como nos Estados Unidos e na Austrália, é um aviso funesto de que já atravessamos o limiar da mudança climática. Ofereceremos no altar da insensatez o sacrifício de milhares de animais carbonizados ? Árvores calcinadas, rios envenenados, nuvens de fumaça tóxica, tapetes de cinzas no Pantanal, no Cerrado, na Amazônia e na Mata Atlântica sem dor na consciência? Sem nenhum conflito ético?
Ou seremos capazes de adiar o fim do mundo, como nos fala o sábio Ailton Krenak? Teremos força para deter essa roda que gira na velocidade dos ganhos cada vez maiores e imediatos para poucos e que deixa as migalhas para a maioria? Não podemos achar normal ou natural a desigualdade escancarada que joga milhões no abismo, na voragem de um sistema econômico que devora o planeta desde as suas entranhas.
Segundo a ONG Oxfam, durante a pandemia, 42 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em mais 34 bilhões de dólares enquanto milhões de pais e mães de família aguardavam nas filas do auxílio emergencial por R$ 600,00 para por comida na mesa para seus filhos.
Seremos capazes de exercer a solidariedade e reduzir as imensas desigualdades que separam os passageiros da nave Terra em cidadãos de classe premium e as legiões de desesperados, imigrantes rejeitados, peregrinos sem amanhã? Acordaremos a tempo de resgatar nossa humanidade ?
Como jornalista e escritora, muita gente me pergunta: ‘o que fazer?’ Não tenho receita nem fórmula. Sou muito mais treinada para fazer perguntas do que para dar respostas. Mas acho que esse é exatamente o ponto de partida: fazer as perguntas. Não considerar o errado, normal, aceitável, tolerável. Não se conformar, não se acomodar.
Isso é o que posso fazer: questionar, pensar, discutir o meu tempo presente, meu país, o mundo em que vivo. E escrever. Foi o que as vozes de Mariana me ensinaram. A elas devo esse compromisso.
(esse texto foi a base da minha apresentação no TEDx Laçador 2020, realizado de maneira virtual em 24/10/2020)
0 comentários