A tragédia da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, acaba de completar dez anos e está reconstituída em duas séries em exibição no streaming. Ambas têm o grande mérito de envolver o espectador no vórtice de sofrimento e revolta dos sobreviventes e dos pais dos 242 jovens mortos dentro de uma câmara de gás.
As duas séries resultam do trabalho obstinado dos jornalistas Daniela Arbex e Marcelo Canellas, que acompanham a luta das famílias pela punição dos responsáveis. Neste ponto, a dor dilacerante pela perda dos filhos se cruza com um sistema jurídico moldado para produzir injustiça e impunidade.
A boate preenchia um catálogo de irregularidades. Não tinha saídas de emergência. Extintores eram peça de decoração. A espuma do teto era de material inflamável mais barato e de pior qualidade. Os fogos de artifício usados pela banda também. A superlotação completou a fórmula para o morticínio.
Dois sócios da boate e dois integrantes da banda foram denunciados, mas os pais sempre lutaram pela ampliação das responsabilidades, visando a atuação do poder público. Quem deu alvará de funcionamento para aquela ratoeira? Quem fiscalizou a boate?
Os pais apontaram falhas na atuação do Ministério Público do Rio Grande do Sul e, por isso, tiveram que responder a processo por calúnia e difamação movido por alguns promotores. Absurda inversão de papéis que deu em nada, mas aprofundou o penoso calvário das famílias.
Nesses dez anos, o processo contra os quatro réus avançou e retrocedeu ao sabor da fartura de recursos e filigranas jurídicas. O julgamento que os condenou foi anulado por instância superior. Não há desfecho à vista. Ninguém está preso. É um crime sem autoria, sem responsáveis, sem castigo.
O que sobra é a impunidade que estimula outras tragédias. Onde? Quando? Quem estará na próxima? Meu filho? O seu? A impunidade agride a memória dos mortos, pune os pais e os sobreviventes e nos degrada como sociedade.
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