As intimações para que duas lideranças indígenas, Sônia Guajajara e Almir Suruí, prestem depoimento à Polícia Federal são o mais recente capítulo de um cerco permanente contra os indígenas desde que Bolsonaro chegou ao poder. Já na campanha ele deixara claro que iria persegui-los naquilo que lhes é mais essencial: seu direito à terra, matriz de sua existência e cultura. Tem cumprido a promessa à risca.
O inquérito da PF foi aberto a partir de queixa-crime apresentada pela Funai, que assumiu a linha de frente do ataque, na contramão de sua obrigação, qual seja, proteger os índios. A acusação é de que as lideranças estariam promovendo “fake news”, ao criticar o governo pelo péssimo atendimento às aldeias na pandemia.
A Funai mostrou-se particularmente irritada com a série “Agora é a vez do maracá”. O documentário foi produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da qual Sônia Guajajara é coordenadora-executiva. Exibida na internet, a série traça um roteiro de agressões aos povos nativos, num cenário bastante agravado pela Covid-19. Alguns dos mortos eram os últimos guardiões de tradições, língua e memórias de grupos já bastante reduzidos numericamente.
A pandemia também matou guerreiros que lideraram seus povos nas últimas décadas de confronto com o avanço de desmatadores sobre a floresta. Neste contexto, as mortes podem se enquadrar nos crimes de genocídio e etnocídio. Até o momento, a Covid matou 1.060 indígenas, de 163 nações.
Além das denúncias, há um outro aspecto muito importante no documentário. Ele é a confirmação de que uma nova geração de indígenas é responsável por uma vibrante produção audiovisual, usando com naturalidade o arsenal tecnológico da sociedade “branca”. Nem por isso, eles deixam de ser quem são. Ao contrário, é assim que “a tribo do Iphone” reafirma sua identidade e toma nas mãos o poder de contar sua própria história.
(publicado originalmente na Folha de São Paulo em 04/05/2021)
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