Sou fã de longa data do historiador Daniel Aarão Reis, professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense e autor de vários livros, entre eles “Luís Carlos Prestes - um revolucionário entre dois mundos”, biografia do líder comunista. Daniel tem uma coluna no jornal O Globo, onde faz análises muito lúcidas sobre o momento que estamos vivendo. A que posto abaixo, com sua autorização, foi publicada neste sábado, 8/8/2020. A reprodução da coluna de Daniel é a estreia desta seção do blog, onde sempre vou postar textos de gente que pensa o Brasil e que com suas reflexões pode nos indicar caminhos para sairmos do abismo. Sem dúvida, é o caso do Daniel que, ainda por cima, é meu parceiro no canal no Youtube “Rebeldes Sempre”.
Um filme sem mocinhos
Daniel Aarão Reis
‘Não me venha satanás pregando quaresma.’ A reprimenda não foi apresentada por nenhum pastor a alguma ovelha desgarrada, fez parte da fala de Augusto Aras, procurador-geral da República, em reunião do Conselho Superior do Ministério Público Federal, realizada em 31 de julho passado. Sua Excelência denunciou manobras ocultas sob “covarde anonimato”, aparelhamento da instituição por lideranças anarcossindicalistas, fake news e mentiras contra si mesmo e sua família, divulgadas por uma imprensa que “baba”. Numa curva surpreendente de sua catilinária, permitiu-se invocar verso doce de Mario Quintana: “Eles passarão (eles quem?), eu (ele mesmo) passarinho”. E terminou proclamando sólidos princípios: república, democracia, legalidade e moralidade. Feito o que, encerrou a fala e, no embalo, também a reunião, sem dar voz ao contraditório, esta augusta tradição jurídica.
A reunião foi mais um episódio da contenda que opõe Aras à Operação Lava-Jato, coordenada pelo procurador Deltan Dallagnol e cujo mentor, até 2018, era o Juiz Sergio Moro. Aras, como se disse, é procurador-geral da República, mas é também procurador particular de Jair Bolsonaro, que o nomeou para o cargo e acena com uma possível indicação de Sua Excelência para ministro do Supremo Tribunal Federal.
E o que isso tem a ver com a Operação Lava-Jato? Bolsonaro não se elegeu, em grande parte, graças ao trabalho da Lava-Jato, que demoliu o sistema político e suas lideranças, abrindo portas para a candidatura do ex-capitão do Exército, figurado como outsider? Não foi graças a isso que Moro se tornou ministro da Justiça? Tudo isso é verdade, ou melhor, foi, pois agora virou passado. No presente, Moro, demitido do cargo, tornou-se acusador do presidente e, no futuro próximo, aparece como candidato alternativo a Bolsonaro.
Tornou-se, assim, imperativo para o presidente enfraquecer Moro, cuja imagem se desgastou com as revelações da Vaza-Jato. Por elas se soube o que muitos já desconfiavam: Moro-Dallagnol não agiam como procurador e juiz, porém como justiceiros, coligados, compartilhando ações, avaliações e investigações. Aras-Bolsonaro querem agora aprofundar o desgaste, levá-lo ao grau da destruição. E é por isso que os dois querem pôr a mão nos acervos e arquivos da Lava-Jato. Suspeitam encontrar aí malfeitos e ilegalidades apenas entrevistos, suspeitados, todavia não comprovados até agora.
Os procuradores da Lava-Jato protestaram. Não querem por nada deste mundo compartilhar seus arquivos. E invocam os mesmos princípios de Aras: república, democracia, legalidade e moralidade. O caso subiu ao STF, pois, neste país, qualquer briga de botequim acaba na mais alta Corte. A velocidade do julgamento, é claro, depende do botequim e dos envolvidos na briga. Como os deuses do Olimpo estavam de férias, Dias Toffoli, o presidente, decidiu a favor de Aras, que, numa conversa com advogados, cobriu a Lava-Jato de críticas, sendo acusado pelos adversários de ter desconstruído a imagem do MP. A querela conheceu nova reviravolta, pois, voltando de merecidas férias, o ministro Edson Fachin, relator do caso, decidiu pelos procuradores e anulou a decisão de Toffoli.
Essa novela, contudo, está longe do fim. De parte a parte, os princípios invocados são os mais altos, embora sejam os mais baixos os golpes trocados por cima e por baixo da mesa e da cintura. Não há dúvida de que todos os envolvidos são “homens honrados”, como disse Marco Antônio no enterro de Júlio César. Mas não é possível deixar de perceber uma sensação de que algo, e algo muito grande, está podre no reino da Dinamarca, para citar mais uma vez o Bardo.
De sorte que brota uma sensação de descrença entre os que acompanham a discórdia. Estaríamos então num mundo sem esperança? Não há condições de torcer por ninguém neste filme sem mocinhos?
A melhor alternativa é torcer para que a briga continue ainda por um bom tempo. Pois é pelos bate-bocas nas alturas que os cidadãos comuns podem conhecer — e decifrar — os segredos da Casa-Grande.
O Globo, 08/08/2020
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