Cristina
Serra
jornalista &
escritora.

Cristina
Serra
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escritora.

jan 21, 2021 | Jornalismo

Violência contra jornalistas

O site Repórter Brasil, criado há 20 anos, tem marcado sua atuação pela cobertura de temas como trabalho escravo, violações aos direitos humanos de comunidades indígenas e quilombolas e agressões ao meio ambiente. São assuntos que nem sempre merecem a devida atenção da mídia tradicional.

Por conta de sua pauta comprometida com o respeito aos direitos dos cidadãos mais desfavorecidos da sociedade brasileira, o site tem sido alvo de ataques desde a sua fundação, inclusive por parte de grandes grupos econômicos.

Desta vez, porém, a intimidação alcançou patamar mais elevado. O site tem sofrido invasões de hackers diariamente e os criminosos exigem a retirada de conteúdo editorial para interromper os ataques. Querem impor a autocensura.

Nesta entrevista, o diretor do site, Leonardo Sakamoto, conta como o site tem se defendido das invasões digitais e reflete sobre o contexto mais amplo de violência contra jornalistas e o perigo da banalização dessas agressões em tempos de bolsonarismo.

Cristina - Como foram os ataques ao site Repórter Brasil e à casa onde vocês trabalham?

Sakamoto - No dia 6 de janeiro, o Repórter Brasil começou a sofrer ataques digitais, tentativas de derrubar o site por excesso de visitas, o que é relativamente comum contra órgãos de imprensa. O acesso transborda e isso faz com que o site saia do ar. Nós temos uma equipe de segurança digital e eles começaram a atuar contra o ataque. Mas no dia 7, nós recebemos uma mensagem de um e-mail, de um provedor que fica na Alemanha. A mensagem dizia que os ataques digitais vinham deles e que se todos os nossos conteúdos entre 2003 e 2005 não fossem retirados do ar, a gente continuaria sem acesso ao site. É claro que nós não cedemos à chantagem e eles continuaram desafiando os nossos técnicos de segurança. Desde o dia 6, a Repórter Brasil tem tombado todos os dias por mais que a nossa equipe atue. O site ficar fora do ar por várias horas.

Cristina - Por até quanto tempo?

Sakamoto - `As vezes, por até oito horas num só dia. A nossa equipe neutraliza o ataque, mas eles voltam com força pra interromper. Eles tem tirado o site do ar todos os dias e tentam em horários diferentes pra tentar pegar a nossa equipe técnica desguarnecida. Fazem um ataque em massa, param, voltam duas horas depois, fazem de novo. São vários ataques diferentes. É que nem ataque de vírus. O sistema imunológico percebe e neutraliza um vírus, aí vem outro e outro. Eles fazem a mesma coisa, partem pra outro tipo de vírus e outro e outro. Esse tipo de chantagem que eles estão fazendo é nova. Normalmente, nesses ataques, sequestram um site ou arquivos e pedem dinheiro. Mas dessa vez o que eles estão pedindo é autocensura. Estão pedindo que a gente tire conteúdos jornalísticos que estão no ar faz tempo.

Cristina - Como foi a tentativa de invasão da sede ?

Sakamoto - Depois dos ataques virtuais, na manhã do dia 7 de janeiro, tentaram arrombar o portão da sede da Repórter Brasil, em São Paulo. Felizmente, não tiveram sucesso porque vizinhos chegaram e chamaram a polícia. As pessoas se assustaram e foram embora.

Cristina - Que medidas vocês tomaram ?

Sakamoto - Nós fizemos dois boletins de ocorrência na delegacia. Um boletim falando do ataque virtual com a chantagem e outro sobre a tentativa de arrombamento, que não sabemos se tem relação direta entre uma coisa e outra. Mas é uma coincidência muito estranha. Por sorte, não havia ninguém na casa na hora da tentativa de arrombamento. Depois dos B.Os, o delegado abriu inquérito, tomou depoimentos e mandou fazer perícia no local. Nós também levamos o caso ao Ministério Público Federal, comunicamos à ONU e à OEA, por meio de interlocutores nossos, às instâncias de liberdade de expressão. E levamos a várias entidades de defesa do jornalismo.

Cristina - E os ataques virtuais continuam?

Sakamoto - Sim, nós recebemos uma mensagem que se as demandas não fossem atendidas, não só o site ficaria fora do ar, como todos os funcionários da Repórter Brasil seriam prejudicados. Ou seja, passaram a ameaçar a equipe inteira. A gente não sabe o que mais eles são capazes de fazer. E aí ampliamos a segurança na Repórter Brasil. As pessoas já não estavam indo à sede por causa da pandemia. Mas, as equipes do financeiro e administrativo íam. Orientamos que ninguém saia sozinho à noite e reforçamos várias medidas de segurança digital também. Tomamos algumas medidas de reforço de privacidade de alguns funcionários. Mas, no meu caso, é o contrário. A minha segurança é aumentar a minha exposição. Eu sofro ataques há seis anos, já recebi até ameaça de morte. Então, eu me preocupo menos comigo e mais com a minha equipe.

Cristina - Esse tipo de ataque, pedindo a autocensura, é a primeira vez que acontece com um veículo jornalístico, que você tenha conhecimento?

Sakamoto - Os nossos advogados e mesmo advogados que já trabalham há mais tempo na defesa de jornalistas nos dizem que é a primeira vez que veem esse tipo de ataque. A gente até brinca que a Repórter Brasil inaugura alguns tipos de ataque. Por exemplo, em 2015 pagaram um anúncio no Google para me difamar. Na investigação, que rastreou e fez quebra de sigilo, descobriu-se que era um frigorífico que estava bancando isso. É muito difícil saber qual a motivação do ataque. Eu faço reportagem investigativa sobre muitos assuntos. Nesses três anos de conteúdo que eles querem apagar tem muita coisa: trabalho escravo, desmatamento, danos à comunidades indígenas e quilombolas, violência contra jornalistas, trabalho infantil, tráfico e outros assuntos. Os criminosos não dizem qual o assunto que deve ser apagado, dizem o período, entre 2003 e 2005. Pode ser, inclusive, que isso seja um despiste. Eles podem, simplesmente, querer tirar a Repórter Brasil do ar por causa de alguma matéria recente, alguma investigação nova que tenha incomodado. É um tipo de ataque novo e por isso a gente está falando tanto com os colegas e a imprensa porque isso poderá ser feito contra veículos grandes ou pequenos, principalmente para veículos menores, que não tem condições de contratar advogado e equipe de segurança pra segurar o tranco. É importante descobrir quem fez isso e que essas pessoas sejam, pelo menos, expostas. Elas precisam saber que não são invencíveis.

Cristina - Os ataques a você e ao Repórter Brasil aumentaram depois que Bolsonaro chegou ao poder? Você vê alguma relação entre os ataques e o ambiente do bolsonarismo no Brasil, já que o presidente ataca a imprensa e jornalistas o tempo todo ?

Sakamoto - O bolsonarismo é anterior à presidência do Bolsonaro e vai se manter posterior à queda do Bolsonaro, seja saída eleitoral ou qualquer outra forma institucional. É um movimento que já vem de anos. Esse ultraconservadorismo foi a razão da violência contra mim e contra a Repórter Brasil. Já sofri ataques físicos, já apanhei na rua, fui xingado, ameaçado de morte etc. É claro que houve uma escalada contra mim. A Repórter Brasil trabalha contra interesses pesados, relacionados a direitos humanos, ambientais, trabalhistas, tudo isso. O site nasceu e já começaram os ataques. Então, os ataques sempre existiram. Mas quando o bolsonarismo emerge, se torna uma força político-eleitoral e ganha a presidência, é claro que tudo muda de figura num nível bizarro. Nas eleições de 2018, eu fui parado na rua três vezes e ouvi ameaças de morte. Antes do vetor Bolsonaro, os ataques vinham do poder econômico e do poder político. Hoje, o principal foco de ataque aos jornalistas é o próprio presidente da República e a sua família. Esses ataques geram uma onda de choque.

Cristina - Há um contexto permanente de ataque aos jornalistas estimulado pelo próprio presidente.

Sakamoto - A partir do momento que o chefe de Estado ou de Governo é o principal fomentador da violência contra jornalistas, isso gera um ambiente extremamente tóxico e envenenado em que qualquer ataque, seja ele digital, simbólico ou físico contra um jornalista, é praticamente legitimado pelas ações do presidente. Isso banaliza a violência contra os jornalistas e legitima esse tipo de ação na certeza da impunidade. Sempre houve impunidade na violência contra jornalistas, principalmente no interior do Brasil, onde jornalistas morrem com tiro, facada e por aí vai. Agora, você tem uma coisa mais generalizada e com o presidente legitimando esse processo. Em meio a isso, acontece um ataque como esse à Repórter Brasil. Um ataque que não é apenas pelo excesso de invasão, de acesso pra desestabilizar o site, como era feito antes. É isso e mais a chantagem: “ou tira o conteúdo ou você está ferrado, seus funcionários vão ser prejudicados”. Esse nível de cara de pau é decorrente do ambiente intoxicado pelas ações do próprio presidente. Se você tem um ambiente em que um ataque contra um jornalista é visto como um ataque à democracia, se o Estado reage a isso, é outra situação para os jornalistas. A gente tem que tomar cuidado para que não haja uma normalização dos ataques a jornalistas. Esses ataques são muito violentos, causam um dano individual muito grande nas pessoas, muitos se sentem sozinhos, não aguentam. Há um movimento para colocar a legitimidade da imprensa em cheque, para ameaçar e constranger jornalistas e tem sido bem sucedido. Não podemos perder a nossa capacidade de indignação.

(a entrevista foi publicada originalmente no site da Associação Brasileira de Imprensa - ABI)

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